Quai

1 – QUAI

A praça do mercado se estende, por trás do cais do porto de Palis, como um enorme espaço plano entre as colinas suaves onde se instalam, para defender a cidade, as guarnições militares do Exército outrora chamado imperial.

O mercado, no caso, são as casas atacadistas que rodeiam a praça, aonde os artesãos de Palis vêm comprar matéria-prima para seus trabalhos: couros vindos dos curtumes de Tuspel e Teruan, fio de linho importado de Gusanda, algodão também de Gusanda ou de Genin, fio de lã de Teruan, metais de todo tipo – prata de Sinian, ferro de Genin, cobre de Didinis, especiarias as mais diversas, quase todas de Didinis. Isso, e mais o mercado miúdo que se espalha pela praça propriamente dita, sob a forma de tendas e barracas, mais feira do que mercado, onde se encontram verduras e legumes, ovos, queijos, frutas, roupas baratas de algodão: aqui vende-se e compra-se de tudo. Desde, naturalmente, se tenha dinheiro. O que, no momento, não é o caso de Quai: dois falcões e três penas, que é o que ele tem nos bolsos, não são sequer a garantia de um almoço razoável numa taverna do Bairro Azul.

Este é um problema sério, e que se torna cada vez mais sério, à medida em que a hora da Barriga vai se aproximando. Quai certamente está empenhado em resolvê-lo, mas hoje até agora não foi um dia de sorte. Agora, porém, uma perspectiva de mudança se aproxima, sob a forma de quatro cavaleiros elegantemente vestidos, com mantos de veludo bordado, que descem a rua dos Maus Exemplos, numa formação losangular. A amazona da frente e os cavaleiros dos lados carregam grandes estandartes vermelhos com o falcão negro que serve de símbolo à casa real de Palis. O de trás carrega uma trombeta, que de vez em quando toca, retardando a marcha do conjunto, e um rolo de pergaminho, que já deve ter lido na maioria das outras praças da cidade, como vai fazer agora na praça do mercado. Fernan III, o Tolo, acha que tem algo importante a dizer ao povo.

Quai, que estava observando metodicamente uma barraquinha de apostas - de trapaças, seria melhor dizer - decidiu imediatamente que o arauto seria muito mais interessante do que os movimentos hábeis da trapaceira profissional. Tratou de aproximar-se da extremidade da grande praça, junto ao pesado prédio da Alfândega, onde o cavaleiro da trombeta se empoleiraria, com cavalo e tudo, no enorme pedestal construído para esta finalidade (e também para as execuções públicas, antes que Ada III abolisse a pena de morte, mais de um século atrás), enquanto os outros três se postariam no plano, supostamente para manter a multidão à distância. Ali, sim, Quai encontrou o que vinha procurando sem sucesso, desde a hora das Pernas: uma multidão realmente concentrada, nos dois sentidos da palavra. Centenas de pessoas se acotovelavam, inquietas, agitadas, irritadas, para prestar atenção à mensagem do Rei, a ser transmitida pelo vozeirão do cavaleiro da trombeta. Como se houvesse alguma possibilidade de Fernan III ter alguma coisa importante a dizer.

Os olhos bem treinados de Quai perscrutaram avidamente a multidão. A mulher alta, de roupa imaculadamente branca, com um medalhão da Guilda dos Mercadores, chamou-lhe imediatamente a atenção. Dois marmanjos de bom tamanho caminhavam sempre próximos a ela, e Quai não teve nenhuma dificuldade em entender o que eles faziam. Seguranças. Quai aproximou-se, trocando empurrões. Tropeçou num homem franzino, com roupas cor-de-laranja de prelado, e só não levou um tombo espalhafatoso por que não havia espaço para isto.

- Mas que "duslan"! Por que não olha por onde anda? gritou, irritado. O sacerdote pareceu esquecer-se de quem era e a quem servia, pois retorquiu imediatamente:
- Ora, asno é você, pobretão. Vá cuidar da sua vida!

Quai afastou-se, gesticulando indignado, enquanto várias pessoas em volta riam de ambos. Não viu mais a comerciante, contudo. Espremeu-se em meio à multidão; era relativamente baixo, de forma que tinha dificuldade de ver o que se passava à frente, agora que a massa humana se tornava realmente compacta. Sentiu que mais pessoas se aproximavam, imprensando-o completamente. Atrás dele estava uma mulher de túnica azul sobre calças pretas, ligeiramente gordinha. Logo percebeu que ela se aproveitava do aglomerado para encostar-se nele. Mordeu os lábios, esperou. Quando teve certeza de que ela achava que tinha a cumplicidade dele, fez um movimento brusco.

- Com licença! disse, com a expressão mais indignada que sabia fazer. Afastou-se, empertigado, com grandes ares de pudor ofendido.

Tinha feito a sua aposta, ia tratar de verificar o que ela lhe tinha rendido. Assim que pôde, abandonou o caminhar ereto e ofendido e saiu correndo, rua dos Maus Exemplos acima. Dobrou à direita na rua dos Sapateiros, olhou para trás, ansioso, e entrou numa banca pequena.

- Jacai, você está aí? - perguntou. - Sou eu, Quai. Preciso usar o banheiro, posso?
Um homenzinho atarracado se levantou detrás do balcão, com cara de poucos amigos.
- Mas que mijão! Vá lá, vá duma vez, e suma. Que peste!

Quai abriu a porta do cubículo à esquerda, fechou a tramela improvisada, enfiou a mão por dentro da túnica e tirou de lá duas pequenas bolsas, uma de couro preto, outra de camurça azul. Abriu-as ansioso. A de couro preto, na qual Quai tinha se "segurado" ao tropeçar no sacerdote, era melhor que nada: continha vinte e sete falcões, muitas moedas de penas, talvez uns três falcões no total, e um medalhão religioso, que pelo peso lhe pareceu de prata, mas que a escuridão do cubículo não lhe permitiu avaliar melhor. Mas a outra o fez prender a respiração: tinha uma pequena adaga, dezessete enormes moedas de doze falcões e ainda mais dinheiro, que ele mal teve paciência de contar. No final, quando saiu dali, agradecendo a um mal-humorado Jacai, sabia que tinha, no total, duzentos e cinqüenta e um falcões mais uma asa e duas penas na bolsa, em dinheiro sonante.

Caminhou lentamente em direção ao Bairro Azul, pensando. Cinquenta falcões para pagar o aluguel atrasado na taverna vagabunda em que morava, mais cinquenta para adiantar o mês seguinte, e ainda teria comida razoável por vários dias, sem precisar se meter em mais confusões. Nada mal. Tinha agora que procurar um amigo de confiança que soubesse ler: não sabia ainda se poderia vender ou guardar consigo as bolsas, o medalhão do sacerdote, a adaga da mulher, ou se isso era arriscado demais.

2 – ZUZANIS

Levou quase duas horas para caminhar até a Taverna do Boi Amarrado, numa travessa que não tinha nome, no Bairro Azul. A Taverna do Boi Amarrado era uma construção pobre, mas grande, de pedra, em dois andares, com uma chaminé que já tinha certamente soltado muita fumaça durante a manhã, mas que agora exalava apenas um fiapo cinzento, mostrando que o fogo usado para fazer o almoço e esquentar a água se apagara. A construção tinha uma porta grande, de pinho maciço, que agora estava aberta; ficava aberta desde a Hora da Bexiga, de madrugada, até a Hora das Pálbebras, já de noite.

Quai entrou na taverna com uma tranqüilidade que não sentia havia dias. Detrás do balcão, a taverneira, uma mulher ruiva, mais baixa do que alta e meio gorducha, quarentona ou cinquentona, foi logo gritando com ele:

- Você, imprestável, se não pagar o que me deve, pode ir tirando suas coisas do seu quarto. Já chega de calote.

Quai aproximou-se lentamente do balcão, para aumentar o impacto do que ia fazer. Quando chegou lá, disse baixinho à taverneira furiosa:

- Olha, fechei um bom negócio, vou poder pagar hoje. E se a senhora quiser, posso pagar o próximo mês adiantado, também. Mas só pago adiantado se ganhar uma refeição e um banho por conta da casa.

A taverneira olhou para ele, desconfiada. Mas o tom de voz havia mudado, quando respondeu:

- Hm. Não sei o que é pior, um vagabundo sem dinheiro, ou um vagabundo com dinheiro. Vamos lá, mostre o que você tem aí; você não vai ganhar nada antes de pagar.

Quai tirou três das moedas grandes de dentro da túnica, depois um punhado de falcões, e foi colocando-os sobre a mesa, de três em três:

- Trinta e seis, trinta e nove, quarenta e dois, quarenta e cinco, quarenta e oito… quarenta e nove, cinquenta. Isto paga o mês passado.

Recolheu as moedas que sobravam.

- Isto paga o mês passado – respondeu a taverneira. - Só que o mês passado terminou há dez dias; você ainda me deve dinheiro.
- Tenho mais aqui, disse Quai. - Mas já lhe disse, só pago adiantado se tiver o almoço de hoje e um banho de graça.
- Esta não é uma taverna guildada, moço. Não tenho obrigação de seguir as regras da Guilda. E você não estaria pagando adiantado, pois o mês já começou faz mais de uma fase da lua.
- Está bem, então, senhora. Mas neste caso, só pago o mês daqui a três fases, como deve ser.
- Ééé… mostre-me aí cinquenta falcões, se você tem tudo isso.

Quai tirou mais uma moeda grande da bolsa, e um punhado de falcões, e espalhou-os sobre a mesa. Colocou três falcões junto à moeda grande, depois arrumou os restantes em fileiras de cinco. Completou seis fileiras, faltaram quatro para completar a última.

- São quarenta e seis aí… o resto tenho de lhe pagar em trocado.

Colocou um punhado de penas e asas sobre a mesa:

- Duas asas, um falcão; mais duas e mais duas, são três falcões. Agora mais uma asa, e três, seis, sete penas. São quatro falcões, mais os quarenta e seis, cinquenta. Tenho o que pedi?

A taverneira olhou para ele, para o dinheiro, para ele de novo, e respondeu:

- Está bem, malandro. Escolha uma mesa e sente-se, você tem seu almoço. E amanhã de manhã terá seu banho; não servimos banhos depois da hora da Barriga.

Quai olhou para as mesas; estavam todas ocupadas, pois não eram muitas, e, além dos hóspedes, havia fregueses de fora almoçando. Mas tinha de se virar, a taverneira não considerava isto um problema da casa. Uma das mesas estava ocupada apenas por uma rapariga de vinte e poucos anos, de cabelos lisos e pretos e aparência rústica, comendo um bife grande acompanhado com trigo em grão, salada de rúcula com beterraba e cebola, e queijo de leite de cabra. Quai pediu licença e sentou-se em frente a ela.

Na mesa ao lado deles, um homem gordo, de pele clara e cabelo encarapinhado, falava num sussurro forçado:

- Fernan, naturalmente, é um imbecil. Quisera que pudéssemos ter logo a princesa no trono; aí sim, teríamos uma Rainha de verdade. Mas isto de hoje ultrapassou todas as medidas.

- Ora, Sezongai – interrompeu uma mulher magra e escura. - Todos sabíamos que isto era uma questão de tempo. Há muito que Ossin vem promovendo manobras navais provocativas. E atos de pirataria, também. Eles sabem que a Vela Real não é páreo para a Marinha deles.

Então, tornou o homem. - Seria preciso travar uma guerra por terra, para derrotá-los. Mas há males que vem para o bem, aposto que Fernan terá de abdicar se Ossin vencer a guerra.

- Mas não há como atacá-los por terra, Sezongai. O reino de Sinian fica no meio do caminho, e eles temem Ossin o suficiente para jamais ficar ao nosso lado. Por isso a guerra contra Ossin só pode ser naval. E Fernan acabaria sendo deposto pelos milicos se não tomasse nenhuma atitude contra Ossin, também. Agora, quanto a Glaris… acho que a intenção de todos eles é colocá-la numa encrenca.

- Nada disso aconteceria se Ada fosse a Rainha. É disso que precisamos, Susmis: que Fernan renuncie logo em favor de Ada. Então sim…

Enquanto o prato de Quai – que era exatamente igual ao da moça à sua frente, exceto que ainda tinha a maçã, que ela já tinha comido, e, em vez de queijo, um ovo de galinha cozido - chegava, a terceira pessoa na mesa, uma mulher de pele muito clara e olhos azuis, interrompeu:

- Ada, Ada. Eu também não ficaria nada chateada se tivéssemos um pouco mais de "simplicidade" por aqui. Mas não há milagres, Sezongai. Mesmo que Ada fosse a Rainha, a Vela continuaria sendo uma presa fácil para a Marinha ossiana, de maneira que vamos sim continuar por muito tempo perdendo barcos e cargas para os piratas. É verdade que Ada provavelmente mandaria Delis comandar a Vela contra os ossianos, de maneira que, mesmo perdendo a guerra, pelo menos ganharíamos uma heroína que realmente valeria a pena enterrar… se achassem o cadáver dela.

Todos riram estrepitosamente. A moça sentada à frente de Quai resmungou baixinho, esperou o garçom se afastar, e comentou, com um sotaque interiorano:

- Os grandes brigam, os pequenos morrem… e ainda discutem em honra de quem seria melhor morrer.

Quai olhou para ela, surpreso.

- Do que eles estão falando?
- Você não ouviu os arautos? Nosso amado Rei, Fernan III, o Tolo, cansou-se de seu apelido. Para se tornar conhecido como Fernan III, o Açougueiro, declarou guerra ao Reino de Ossin, e nomeou Glaris de Güena comandante da Vela Real enquanto durar a guerra. Se eu fosse você, ficaria preocupado… a Vela não costuma usar voluntários em tempo de guerra.
- E você, não tem medo de ser recrutada?
- Teria, se fosse uma guerra contra qualquer dos outros reinos. Mas uma guerra contra Ossin é uma guerra naval, e a Vela, quando recruta à força, costuma preferir os homens, não as mulheres. De qualquer forma, se achar que a cidade está ficando perigosa, volto para o campo. Não creio que vão procurar soldados tão longe.
- Eu servi na Espada Real, disse Quai. - Acho que eles não vão querer um soldado de infantaria na Vela.
- Talvez não. Eu servi na cavalaria da marca onde nasci. Também só poderia ser recrutada pela marquesa. Mas nunca convém confiar nos milicos.

Ela tirou de dentro da túnica um rolinho de pergaminho amassado e entregou a Quai. Quai olhou para o pergaminho, depois para a moça, e respondeu, ficando vermelho:

- Eu… eu não…
- Não sabe ler? Então deveria prestar mais atenção aos arautos – disse ela, sorrindo. - Eu leio para você.

Desenrolou o pergaminho e leu:

- Em nome de Sara, somos testemunhas de que Zuzanis Abilain, nascida em Nuazan, filha de Delis Abilain, serviu como soldado na cavalaria da Marca de Nuazan. E aqui embaixo, olha, é a assinatura da marquesa.

Quai olhou para o floreadíssimo autógrafo da senhora marquesa de Nuazan e disse:

- Parece uma festa de minhocas.

Zuzanis riu, enrolando o pergaminho.

- Como você vai dizer a eles que já serviu à Espada?
- Também tenho uma coisa dessas. As pessoas que lêem dizem que ali está escrito que servi na Espada. Quer ver?

Quai tirou uma pequena bolsa, onde guardava tudo que lhe parecia necessário para evitar problemas com a polícia, de dentro da túnica. Infelizmente, os cordões da bolsinha estavam enroscados no medalhão que roubara do sacerdote pela manhã. Zuzanis olhou para o medalhão, pasmada.

- Esconde isso – sussurrou ela. - De quem você tirou isso?
- Tirei? perguntou ele, completamente vermelho de novo, enquanto escondia rapidamente o pingente.
- Não seja bobo. Isso é um medalhão de consagração. Só os sacerdotes de Sara podem ter uma coisa dessas. E você não tem nenhum jeito de quem foi ordenado.
- Hm… eu, eu, eu achei isso no chão, hoje de manhã. Nunca ouvi falar dessas coisas, como é que você sabe disso? Você também não é sacerdotisa…
- Se você achou isso, leve até um templo e coloque entre as oferendas, numa hora em que haja pouco movimento. A não ser, é claro, que você prefira vender isso daí…
- E quem iria querer comprar uma coisa como esta? E para quê?
- Para quê, eu não sei. Mas quem, eu posso lhe dizer, se você prometer que não vai nunca dizer para ninguém que fui eu quem lhe disse.
- E o que você ganha com isso?
- Você é um ladrão, moço. E um ladrão não guildado, senão não teria roubado um sacerdote. Se eu tivesse dinheiro, lhe compraria o medalhão. Por quanto você o venderia? Você não sabe. Então vamos fazer o seguinte: eu lhe digo a quem vender, e você me deve um favor. Afinal, somos colegas.
- Colegas?

Zuzanis não chegou a ter tempo de dar uma resposta. A porta da taverna se abriu, e por ela entrou um casal improvável: um homenzarrão muito alto e forte, de nariz quebrado e expressão boçal, e uma moça loira muito baixinha, de cabeça raspada, exceto por uma trança enrolada em coque, na têmpora direita. Quai sabia muito bem quem eles eram e o motivo que os trazia ali. Olhou para Zuzanis e percebeu que ela também sabia de quem se tratava. Agentes do temível Carelbu Sortai, o Serviço de Ordem da Guilda dos Ladrões de Palis, o gigante Delezel e a notória Gataris, a Samedaibu Gataris – Gataris do Chicote – vinham cobrar proteção da taverneira. A dona de uma taverna não guildada não contribuía – é óbvio – para a Guilda dos Taverneiros, mas isso não era uma grande vantagem, pois a Guilda dos Ladrões exigia um pagamento semanal para isenta-la de assaltos e furtos.

3 – GATARIS

O burburinho da conversa na taverna parou, enquanto os olhos ágeis e maliciosos de Gataris investigavam o ambiente. Além de cobrar proteção de todos aqueles que a polícia da cidade, mantida pelas guildas, não defendia, a principal atividade do Sortai era aterrorizar os gatunos não filiados à Guilda dos Ladrões. O Sortai não costumava matar aqueles que considerava concorrentes desleais; mas isso não chegava a ser um consolo para pessoas como Quai, que conhecia bem vários mendigos cegos ou manetas, incapacitados pela crueldade do Sortai e depois obrigados a pedir esmolas sob a sua “proteção” e reparti-las com seus algozes.

Tendo verificado não haver policiais ou soldados na taverna, Gataris encaminhou-se decidida para o balcão, enquanto Delezel ficava junto à porta. Ela usava uma túnica cinza, com gola e punhos pretos, sobre calças da mesma cor; a túnica era cuidadosamente amarrada na cintura, de maneira a oferecer o mínimo de oportunidades para que sua proprietária fosse agarrada por algum policial mais zeloso. Do lado esquerdo, ostensivo e desafiante, o chicote que originara o apelido, e que nas suas mãos constituía uma arma terrível.

A taverneira sorriu para eles – não tinha muitas alternativas. No Bairro Azul, as guildas não tinham poder, e sua polícia raramente aparecia; e menos ainda os soldados da Guarda Imperial. Aqui o Sortai era a lei, e não faltava quem dissesse que era uma lei tão boa, ou tão ruim, como qualquer outra, do Rei ou dos artesãos. Opinião que, evidentemente, não era partilhada por Quai. A taverneira dirigiu-se a Gataris em voz alta:

- Boa fase, Gataris. Hoje não é dia das Flores. Esperava você depois de amanhã, não hoje.
- Boa fase, Arta. Lamento que não nos esperasse, devia faze-lo sempre. De fato, hoje ainda é dia dos Livros. Mas – ela levantou a voz, para ser ouvida claramente por todos – você há de convir que esta não será uma fase normal… Estamos em guerra, ou melhor, Fernan, o Tolo, está em guerra, e precisando de armas, e soldados, e dinheiro para sua guerra louca e perdida. Então resolvemos visitar os nossos amigos antes que os coletores de impostos de Fernan os deixem sem dinheiro para contribuir para a Guilda.

Arta acenou a cabeça. Não havia nada que obrigasse o Sortai a visitar as tavernas no dia das Flores; apenas se tornara uma conveniência para todos. O Sortai podia contar que as contas dos taverneiros estariam organizadas e a cota da Guilda separada, e os taverneiros ficavam mais tranqüilos de não serem importunados por gente como Floris e Delezel exceto num dia fixo da fase.

- Entendo, Gataris. Infelizmente, não podia adivinhar o dia em que a guerra seria declarada, e não preparei minhas contas. Como vamos fazer?
- Não há problema, Arta. – ela baixou a voz agora, que o assunto só dizia respeito à taverneira – A fase passada, você contribuiu com dezesseis falcões, o que nos parece muito justo. Vamos supor que nesta fase seus lucros estejam no mesmo patamar. Como estamos vindo dois dias antes, e a fase passada teve sete dias, vamos lhe cobrar cinco sétimos de dezesseis falcões: onze falcões e quatro penas. Também quero saber se você sabe de ladrões clandestinos por aqui.

Arta detestava essa parte.

- É para isso que pago vocês, para descobrir ladrões clandestinos e me proteger deles. Não tenho nenhum interesse em hospedar malandros que depois me roubem, ou aos meus colegas. Mas também não tenho controle sobre a vida deles, e muito menos sobre os fregueses que só fazem refeições por aqui. Você está procurando alguém em especial?
- Ninguém em especial, por enquanto. Alguém anda roubando templos, mas não sabemos ainda quem é. Os clientes estão todos em dia?
- Estão. Ninguém está atrasado, ninguém pagou adiantado, ninguém apareceu com coisas novas e caras que eu tenha visto. Dois hóspedes foram embora esta manhã, dois homens jovens. Imagino que estejam fugindo do recrutamento.
- Está bem, Arta. Vamos acertar as contas. Depois… espero que possamos voltar na fase que vem, se a guerra não tumultuar tudo.

Gataris embolsou o dinheiro de Arta e voltou a olhar para os fregueses. Seus olhos se demoraram sobre a mesa de Quai.

- Aquela moça… conhece?
- Não. Não é hóspede, não me lembro de tê-la visto antes. Com certeza, não é uma freguesa habitual.
- Mas o rapaz sentado com ela é hóspede, não é?
- É. Você já me perguntou isso antes, o nome dele é Quai.
- Bom. Não sei como as coisas vão ser daqui para a frente, Arta, e quero avisá-la de uma possibilidade. Talvez você não ganhe muito dinheiro agora, com a guerra, e talvez a Guilda também não esteja tão interessada em dinheiro. Mas podemos precisar de lugares discretos e tranqüilos para alguns companheiros ficarem, se Nossa Majestade quiser usar nossos serviços nas suas banheiras de guerra.

Arta suspirou.

- Pode contar comigo, Gataris. No que depender de mim, ninguém vai ser embarcado à força para servir de pesca aos ossianos.

4 – GLARIS

A sala do Alto Comando era bem diferente da Taverna do Boi Amarrado. Era ampla e arejada, com janelas que se abriam para o Leste; tinha uma ampla mesa oval, de mogno, cercada de cadeiras de espaldar alto, forradas de veludo vermelho; o chão era de mármore polido, as paredes cuidadosamente pintadas de branco e repletas de quadros, a maioria deles retratando destacados generais do passado.

Uma das exceções era um quadro maior, representando uma cena de batalha – o cerco de Astibela. Mulheres montadas, vestidas em uniformes militares que provavelmente ainda não existiam na época do cerco – mais de mil anos atrás! – faziam seus cavalos empinar, sem nenhum motivo aparente, enquanto ao fundo torres de guerra se aproximavam das muralhas da fortaleza, repletas de guerreiras. Uma das amazonas, além de empinar o cavalo, segurava uma lança adornada por uma flâmula que não poderia ter estado lá, mas que identificava a cena para além de qualquer dúvida. “Nós não somos invencíveis, apenas vamos vencer”, dizia a flâmula, a frase famosa de Saanin, a Grande, em resposta à mensagem que o comandante do forte havia mandado a seus aliados, depois de derrotar o primeiro assalto dos sitiantes (“Elas não são invencíveis!”)

Outro quadro que não retratava nenhum general era um retrato do Rei, Fernan III, quando jovem, na época da sua coroação, trinta e poucos anos atrás, orgulhoso num uniforme militar de que não precisava, a coroa resplandecente de ouro e jóias sobre a cabeça; esse retrato ficava atrás de uma das extremidades da mesa. Ficava, portanto, às costas de quem comandava a reunião. Neste dia, tratava-se de uma mulher de meia-idade, envergando um rico uniforme de general-plena, os dois falcões dourados da divisa resplandecendo sobre o tecido branco, as condecorações enfileiradas sobre o seio esquerdo: o Coração do Tigre, com a Estrela correspondente, celebrando a coragem da general, a Garra do Falcão, agarrando o Pergaminho, o Bico do Falcão, a Lua Crescente, a Galera de Prata, e a Ferradura Dourada, cada uma rememorando façanhas passadas. Os outros participantes da reunião – que congregava o Comando e o Estado-Maior de Campanha para a guerra a ser travada – envergavam uniformes das suas armas, pois ainda não haviam atingido o generalato. Três das túnicas pretas tinham o debruado branco da marinha, três delas os debruns verdes da infantaria, uma os detalhes amarelos da Funda Real, uma os detalhes vermelhos dos Arqueiros, e a última totalmente sem enfeites, da Quartel Mestre do Reino – sem a patente de general, a que os intendentes não podiam aspirar, mas, na prática, uma das militares mais experientes de Palis, a comandante geral de todos os serviços – de intendência, transporte, correio, espionagem.

A general não estava satisfeita com as sugestões de seus subordinados.

- No que depender de mim, ninguém vai ser embarcado à força – disse – E depende de mim, não é? Sou a comandante-em-chefe do Exército a ser mobilizado para enfrentar Ossin, e, até onde eu saiba, a Vela Real está à minha disposição, com exceção das unidades fluviais e das encarregadas de enfrentar os piratas jarghitas.
- É verdade, Senhora Duquesa. Porém nossa frota é pesada e antiquada, e, apesar de insuficiente em número, não pode se fazer inteiramente ao largo apenas com os marinheiros profissionais da Vela. É preciso recrutar, Senhora Duquesa.

Glaris, baronesa de Güena, e “Senhora Duquesa” pela patente de General que ocupava na hierarquia militar, olhou para o chefe do seu Estado-Maior. O Coronel Adenai era um homem relativamente jovem, escuro, sério, meticuloso, impecável no seu uniforme preto com as divisas da Vela Real. Plebeu de nascimento, um dos poucos coronéis da marinha cuja nobreza não vinha do sangue.

- Senhor Marquês – disse ela finalmente – conheço as condições em que se encontra a Vela Real. Ainda que coloquemos todos os nossos barcos ao mar, e ainda que tivéssemos o dobro dos navios de que dispomos, nossa marinha não tem condições de atrair o inimigo para um confronto decisivo e anulá-lo. Portanto, recrutar à força vai, em princípio, apenas aumentar o número de baixas.

Os olhos do Coronel se arregalaram. Glaris sorriu.

- Não se escandalize, Senhor Marquês. Sabe muito bem por que é que sou a comandante desta guerra. Sabe que não são os meus méritos militares que me indicam para a tarefa, mas o jogo político dentro do Exército. Como todos crêem que é impossível derrotar a Marinha Ossiana, o comando deve ficar com alguém que não pertença a nenhuma das facções. Como, por exemplo, Glaris de Güena. Assim, Delis, Tinis ou Tunai não correm o risco de ficar desmoralizados em batalha.
- A Senhora poderia…
- Não, Coronel. Não poderia ter recusado esse comando. Por três motivos: em primeiro lugar, o privilégio dos oficiais de origem nobre, que podem recusar um comando sem terem que pedir para passar para a reserva, é odioso, e eu não me valeria dele. Em segundo lugar, sou uma guerreira. Não entrei para a Espada Real para conseguir título de nobreza, nem para fazer uma carreira burocrática à espera de uma aposentadoria generosa. Conheço os riscos da profissão, escolhi enfrenta-los. E, em terceiro lugar, e mais importante ainda, não acredito que seja impossível derrotar Ossin no mar.

Ela olhou para os subordinados, coronéis que ela tinha escolhido a dedo, dentro das possibilidades, entre aqueles que considerava capazes, mas prejudicados na carreira pelas intrigas dentro dos quartéis. Era a primeira vez que um Estado-maior de guerra era composto majoritariamente de plebeus.

- O derrotismo corre solto nos quartéis – continuou ela – e é ainda mais forte fora deles. Temo seriamente que o recrutamento forçado provoque rebeliões nas cidades, ou, pior, motins nos navios. Malin, Adenai, Susmel… os Senhores são oficiais da Vela. Sabem que o problema da marinha não é só material, é sobretudo moral. A maior parte dos oficiais são nobres de nascimento e está na vida militar por que não são primogênitos e não podem herdar. São despreparados, ignorantes e tratam os marinheiros como escravos, não como soldados. A soldadesca não é muito melhor, desmoralizada pelos maus tratos e pelo estilo de comando dos oficiais.

Adenai, Susmel e Malin fizeram gestos de concordância.

- Os Senhores Serena, Floris e Tinel conhecem a situação da Espada Real tão bem como eu. Nossas tropas de infantaria são eficazes e relativamente bem treinadas; os oficiais não são brilhantes, na sua maioria, mas em geral são respeitados pela tropa. O problema é que elas só entrarão em combate se conseguirmos anular a marinha inimiga e desembarcar. Mesmo neste caso, entretanto, o apoio de artilharia embarcada de que dispomos é insuficiente. Segundo o Senhor Pirguel, as balistas colocadas à disposição da força-tarefa estão em mau estado, só metade dos navios dispõe de trabucos. Combinado com o fato de que não vamos dispor da nossa melhor arma, a Sela, nem da Mina Real, parece claro que o objetivo do alto comando não inclui de fato um desembarque. Não vão nos faltar arqueiros, muito pelo contrário, mas temos pouco clareban para nossas necessidades incendiárias. Nestas condições, a única coisa que temos a nosso favor é o fato de que, assim como os palisinos acreditam que não podem vencer, os ossianos pensam que não podem perder. A Senhora Zuzanis, da Balança de Guerra, acredita ainda que os transportes à nossa disposição são demasiado frágeis. Não falta lasguin, mas como além das flechas do inimigo é preciso temer o clima ossiano, precisaríamos de mais lã do que temos. E há motivos para crer que os ossianos conhecem nossos códigos.
- Os códigos serão trocados, General – disse Zuzanis.
- Não – disse Glaris – ainda não. Se fizermos isso, saberão que o código atual não merece mais nossa confiança. Precisamos de outra coisa: manter o código atual para que eles interceptem informações falsas, e de um sistema paralelo para as informações verdadeiras.
- E o que seria esse sistema?
- Não sei, Zuzanis. Inventar algo assim vai ser tarefa do seu pessoal.

Glaris levantou-se. Os outros a imitaram. Passavam agora a observar o mapa estendido sobre a mesa.

- Não vamos ter sequer a vantagem da surpresa. Embora tenhamos declarado guerra a eles, eles é que têm se preparado a sério para o combate. Portanto, não temos condições de desfechar um golpe decisivo, fulminante, e vamos ter que nos preparar para um confronto nos termos que interessam a eles: o combate aberto entre as frotas. Ainda assim, precisamos contar com alguns planos táticos. Aqui, aqui, ali – ia apontando no mapa – eles têm faróis. Serena, Andana, Pirguel, ficam encarregados de planejar a ocupação dessas ilhas, ou, pelo menos, a destruição dos faróis, armazéns, paióis, píeres. Adenai e eu, enquanto isso, prepararemos o plano estratégico. Em resumo, tenho as seguintes idéias: primeiro, o alto comando não nos deu instrumentos para operações terrestres na envergadura necessária. Por isso, se obtivermos uma vitória naval decisiva, a guerra entrará num impasse, e o alto comando entrará em crise. Assim, o plano estratégico não vai incluir o detalhamento da invasão terrestre de Ossin. Lamento, Serena.

Serena deu de ombros.

- É uma pena, claro. Mas paciência, não adianta fazer planos que não podem ser realizados.

Ela olhou de volta para o mapa.

- Estas ilhas – apontou para as mais próximas do território continental palisino – podemos provavelmente ocupar sem maiores problemas, se nos pusermos ao largo logo. Até onde saibamos, a frota principal deles está ancorada em Didinis. Supondo que eles recebam a declaração de guerra depois de amanhã, então não estarão nas ilhas em menos de…

Olhou para os colegas da marinha, em busca de apoio.

- Nesta época do ano – ponderou Malin – terão de navegar devagar, o degelo está adiantado e o mar coalhado de pistagaras, blocos de gelo flutuantes. Eu diria três fases, considerando que os navios deles são melhores que os nossos.

- E nós, quando podemos zarpar?
- Em uma fase, na melhor das hipóteses, podemos por no mar a maior parte dos nossos navios atuais. E levaremos mais outra fase para ir até as ilhas. Mas teremos de ir e voltar; com uma frota pequena como a nossa, não podemos nos arriscar a ser surpreendidos no mar pela Marinha ossiana.

Serena suspirou.

- Isso nos limita a estas ilhas… - apontou no mapa – Singlara, onde eles tem um farol e um armazém. Também devem ter catapultas, talvez até um trabuco, e uma guarnição. Evelenia… tem uma aldeia nessa ilha, eles têm um píer lá, e armazéns. A população é palisina, pode se revoltar contra eles se lhe dermos armas e alguma esperança. E… isto aqui… Tetis Gara, a Ilha da Neblina. Acho que não tem nada lá…

- Não que eu saiba – completou Zuzanis – talvez pescadores, não mais que isso, e mesmo assim não permanentemente. São na verdade duas ilhas, ou melhor dois rochedos, separados por um estreito; nesta época do ano, fica envolta na neblina a maior parte do dia. A terra é estéril, não cresce nada lá, e desembarcar também é problemático.
- Então nem vale a pena. Vamos deixar Tetis Gara de lado, vamos nos concentrar em Evelenia e Singlara. Singlara não deve ser difícil; na verdade suponho que eles evacuem a guarnição o mais rápido que puderem, já que não vão poder defendê-la num primeiro momento. Não duvido que eles mesmos destruam o farol. Já Evelenia é mais complicado. Acredito que a guarnição seja maior, e as fortificações, pelo que lembro, são consideráveis, devem aguentar bem mais do que uma fase, ainda mais que não temos engenharia e nossa artilharia é fraca. No lugar deles eu defenderia a praça e aguardaria a frota chegar.
- Ah – disse Glaris. Então Evelenia é um bom lugar para chamá-los. Se atacarmos, a frota ossiana irá para lá.
- Acho que sim – respondeu Malin – mas do que adianta? Um confronto entre as frotas seria desastroso para nós, ainda mais no prazo de três fases, quando não teremos reparado nossos navios, nem construído novos.
- Uma armadilha? – perguntou Adenai – não temos chance num confronto direto, mas talvez uma emboscada…
- Eles terão a praia – objetou Floris – não vamos poder imprensá-los entre a esquadra e uma praia hostil.
- Floris está certa – disse Serena – mas isso não é o que me preocupa mais. - olhou para Glaris – Com sua licença, General…
- Sim? Pode objetar, Serena.
- Não vejo qual é a estratégia. Suponhamos que consigamos o objetivo tático. Atraímos a frota ossiana, e por algum estratagema que ainda não imaginamos, mas que vamos descobrir em poucos dias, conseguimos o impossível, afundamos a esquadra deles… e daí? Voltamos para casa e esperamos que eles reconstruam a frota? Qual é o nosso objetivo?
- O objetivo, Senhora Marquesa – Glaris sorriu – deveria ter sido definido pelo Alto Comando. Não foi. Perguntei a Nossa Majestade, Fernan III, qual a missão que me tinha sido confiada. Não soube dizer. Então… não há objetivo.

Os coronéis se remexeram, incomodados. Glaris continuou:

- Ou melhor, o objetivo, para o Alto Comando, é a derrota militar, e consequentemente a queda da dinastia, ou pelo menos do Rei.
- Mas isso é traição! – exclamou Floris. – Nossa Majestade sabe disso?
- A senhora diria a ele? E se dissesse, ele acreditaria? Não, Coronel. Não informei a Nossa Majestade o que penso das decisões do Alto Comando. Não tenho como provar essas coisas. Se dissesse, temo que não acreditasse, e, não acreditando, mandasse me prender.

Serena desanimou.

- Então o que faremos? Não podemos vencer se nem ao menos sabemos quais são as condições de vitória.
- Vão saber agora. Nesta guerra, a tática é militar, mas a estratégia é política. Para o Alto Comando as condições de vitória são uma derrota naval fora, abrindo caminho para um golpe militar. Para nós, portanto, as condições de vitória são uma vitória tática no mar, contra os ossianos. Se a obtivermos, o que o Alto Comando vai fazer? Continuar com o golpe, contra um Rei que acabou de obter uma vitória inacreditável? Enterrar a espada, e permitir que uma vitória histórica contra Ossin se transforme em nada, por não ter planejado a continuação da guerra? Me convidar para participar do golpe? Se vencermos, senhores, o Alto Comando estará derrotado.

Glaris olhou atentamente para os seus subordinados.

- Conheço bem cada um dos senhores, meus subordinados. Não os escolhi à toa. São todos excelentes oficiais, são todos plebeus, são todos corajosos, competentes… e nenhum progrediu na carreira com a rapidez com que poderia. E sabem muito bem por quê.

Os coronéis baixaram as cabeças.

- Quem quiser sair, pode sair agora. Pode alegar o motivo que quiser. Eu os liberarei da missão. Se tentarem dizer o que já sabem, não serão acreditados. Zuzanis se encarregará disso. Se quiserem continuar… terão de estar dispostos a tudo. Então?

Serena sorriu.

- Então é mesmo verdade… estou com a senhora, General… para o que der e vier.
- Eu também – disse Adenai, tirando a espada e colocando-a sobre a mesa, diante de Glaris.

E, em menos de um minuto, havia nove espadas sobre a mesa. Os coronéis começaram a rir.

- Agora, chega – disse Glaris. – Nós vamos vencer, como disse Saanin, a Grande… mas ainda precisamos descobrir como. Cada um vai agora pensar nisso. Precisamos de uma armadilha, vamos ter de inventá-la. Amanhã nos reunimos de novo. Nada vai acontecer se não pusermos os navios de Ossin no fundo do Oceano Azul dentro de três fases.

5 – UM CONVITE

(onde Zuzanis convida Quai para uma aventura noturna)

6 – PRESTAÇÃO DE CONTAS

Gataris mostrou as mãos para a dupla mal-encarada que ladeava a porta da sala; a mulher deu um tapinha na direita, e riu:

- Cuidado, a Mestra não está de bom humor hoje.
- E nem você, Adena – sorriu Gataris.
- Eu nunca estou de bom-humor, Gataris.
- Não seja mentirosa, querida. Todo mundo sabe que você fica eufórica quando consegue matar um cachorrinho.
- Gatinhos são melhores, Gataris… mas só tem graça quando demoram a morrer.

Gataris riu; o homem que fazia dupla com Adena também.

- Então, podemos entrar?
- Pode… você tem mesmo que levar esse grandalhão junto com você?
- Tenho, Adena. Não posso deixar o pobrezinho desprotegido, não é?

Adena abriu a porta, Gataris entrou, com Delezel atrás.

- Gatinhos? – perguntou Delezel.
- Ela estava brincando, Delezel. Você não tem que acreditar em tudo que ouve, já lhe disse.

A sala estava bastante escura, iluminada por uma única vela; e essa vela ficava atrás da Mestra, de maneira que Gataris não podia ver a expressão do rosto, nem dela, nem dos outros dois Companheiros sentados cada um de um lado. Gataris mostrou as mãos novamente. A Mestra deu uma palmadinha nelas.

- Longa vida, mestra dos meus mestres. Venho fazer o relato das visitas desta fase. Se não for importuno.
- Longa vida, Gataris. Você nunca é importuna; pode falar.
- Sim, mestra. Obedeço. Fizemos a ronda das tavernas do Bairro Azul ontem, todas menos as que cabem a Florel. A cidade está nervosa. A declaração de guerra mexeu com todos, e a notícia se espalhou rápido. Todos temem o recrutamento forçado, muitos estão deixando a cidade. Quem pode está voltando para o campo. Então, a renda de ontem foi boa, considerando que encurtamos a fase. Mas a próxima semana será difícil; as tavernas vão perder clientes.
- É de se esperar, Gataris. Todos os negócios serão prejudicados. Ou quase todos; há coisas que prosperam na guerra – a Mestra riu – como, por exemplo, a venda de documentos falsos, não é, Malan?

O homem à direita da Mestra riu, satisfeito.

- Moedas falsas também, mestra. Na verdade, tudo que é falso prospera na guerra. - Principalmente falsos heróis! Deveríamos ser capazes de falsificar heróis, isso seria muito positivo para a honra e a glória da Outra Guilda.
- Pode ser, Malan… mas também pode ser que essa guerra seja ela mesma uma falsa guerra. Então vá pensando: se numa guerra de verdade tudo que é falso prospera, numa guerra falsa quem sabe prospere o que é verdadeiro?

Todos riram, Malan, Gataris, e a mulher sentada à esquerda da Mestra.

- Mas prossiga, Gataris. Os otários estão nervosos, com medo de serem recrutados, e os taverneiros receiam perder dinheiro. Os últimos estão certos, e os primeiros estão errados.
- Eu sei, mestra. À noite, começaram os boatos de que não haverá recrutamento. E hoje de manhã eu mesma vi os arautos darem essa notícia. Em vez de recrutar, Fernan o Tolo prometeu indulto aos prisioneiros que forem voluntários.
- Muito bem. Que mais dizem as pessoas?
- Que vamos perder a guerra, o que me parece óbvio. Que a promessa de indulto de Fernan é falsa, ou que ele só a fez porque tem certeza de que todos vão morrer no mar. Há muito descontentamento com o Rei e com o exército. Dizem que o Rei escolheu Glaris de Güena para comandar a campanha por que os generais querem se livrar dela, ou por que Tunai em particular quer se livrar dela, ou Delis de Sangama, ou Tinis Anadiana, ou esses três juntos. Há muito ódio em especial contra Delis de Sangama, e contra a Liga das Antigas Liberdades. Muitos falam que a princesa Ada seria uma rainha melhor do que Fernan.
- Certo. Vamos ter de pensar nessas coisas. Por enquanto, Gataris, quero que você ajude a espalhar o boato de que a Guilda Gris está proibindo nossos membros de aceitarem o indulto de Fernan. Melhor, que nossos agentes dentro da cadeia vão matar os membros da guilda que se deixarem recrutar. E que vamos abandonar as famílias dos que desobedecerem. Todos devem saber que a Outra Guilda é contra essa guerra. Entende, Gataris?
- Sim, mestra. Será como ordena. Diremos isso; somos contra a guerra, e nossos membros devem rejeitar o indulto de Fernan.
- Não, Gataris. Os nossos membros estão livres para aceitar o indulto; mas os otários devem pensar que os companheiros estão proibidos.
- Entendo. Diremos aos otários que os nossos membros estão proibidos de aceitar o indulto. Entre nós, discutiremos o assunto de outra forma.
- Isso. Mais ainda. Vamos fomentar o ódio contra Fernan e contra Delis. Não contra Tunai ou Tinis. Ou Glaris. Mas seja discreta. Concorde com quem falar contra eles, mas não comece o assunto. Não concorde nem discorde a respeito de Ada. Mas chega disso. Nós continuamos com um problema. Alguém está assaltando templos aqui em Palis. Foram três nas duas últimas semanas, e isso não pode continuar. A Outra Guilda tem o compromisso de impedir esse tipo de coisa. Cada companheiro é livre para acreditar em Sara ou não, e até mesmo para contribuir para o Caminho ou participar dos cultos nortistas, mas a Guilda Gris protege a Fé Verdadeira. E não permite a atuação de ladrões individuais. E não se deixa desmoralizar por pessoas assim – faz justiça contra eles, e se orgulha de encontrá-los e puni-los antes dos imbecis da Guarda Real ou da Milícia do Burgo. Você e seus colegas já sabem disso, e ainda não foram capazes de encontrar o infeliz que assalta os templos. E eu estou perdendo a paciência, Gataris.

Gataris engoliu em seco. Não que tivesse muito a temer; até onde soubesse, ninguém no Sortai tinha a menor idéia de quem pudesse ser o assaltante de templos. E a mestra do Sortai precisava dos seus subordinados; sem eles ficaria cega e surda e perderia a utilidade para a Mestra Geral. Ainda assim, sabia que a ira da mestra era perigosa.

- Nós continuamos procurando, mestra. Os taverneiros não têm colaborado, não devem saber quem é. Normalmente eles não têm problemas em denunciar ladrões individuais. Pode ser que seja alguém que não more em tavernas, talvez nem as freqüente.
- Pode ser. De qualquer forma, é alguém que está escapando não só de você, mas de toda nossa rede. Mas você é nossa melhor miliciana, Gataris. Você vai ter de ter sucesso onde todos estão falhando. Por isso estou tirando você do serviço de ronda das tavernas. A partir da próxima semana, Garinganis vai cuidar disso. E você vai cuidar dos templos.
- Dos templos? Mestra, os templos são protegidos pelas milícias do Rei e da cidade, e os sacerdotes não confiam em nós, e, aliás, nem nos conhecem. Não posso colocar guardas nas portas dos templos. Como vou cuidar deles?
- Não quero que você guarde os templos, Gataris. Quero que você descubra quem os está roubando. Que pergunte aos sacerdotes o que eles sabem, aos vizinhos o que eles viram. Se você conseguir descobrir qual templo será assaltado quando, então sim, você pode reunir o seu pessoal e montar uma emboscada. Mas não antes disso. Primeiro, você vai descobrir a verdade para mim. Você pode considerar isso uma promoção, Gataris. Mas não me decepcione ou você vai cuidar da mendicância. E agora pode ir.

Gataris não gostou nada disso. Era uma coisa simplesmente manter os ouvidos e os olhos abertos, e informar a mestra a respeito do que tinha visto e ouvido. Seria muito diferente ter de buscar uma informação em particular. Ainda mais envolvendo coisas tão complicadas como a Fé Verdadeira, sacerdotes, e um ladrão de templos que conseguia escapar à vigilância de todo o Carelbu Sortai. E outras coisas. E tudo enquanto toda a cidade temia a guerra que vinha.

Mas não adiantava não gostar; eram ordens que ela teria de cumprir. E era, de certa forma, uma promoção, é verdade. Pelo visto, ela era agora um outro tipo de espiã. Mais responsabilidade, mais poder. Mais problemas. A Gataris só restava uma pergunta:

- Estarei sozinha, mestra?
- Pergunta certa, Gataris. Não. Você pode escolher dois… três companheiros. Companheiros, não. Use aprendizes… mas não idiotas – Gataris teve a nítida impressão de que a mestra olhou para Delezel quando disse isso. – Você precisa de sugestões?
- Não, mestra. Quero, hm, Gaulama, a vesga, Floris, que foi sapateira, e… e Maulel, que ajuda na ronda dos mendigos na Rua dos Oleiros… pode ser?
- Floris com certeza. Maulel é verde demais. E Gaulama não. Precisamos dela no porto agora, estamos em guerra, é hora em que o pessoal do contrabando precisa de gente. Temos poucos aprendizes lá.
- Senhora, com sua licença, quero Maulel exatamente por que é verde demais. Pouco conhecido. Vamos precisar falar com sacerdotes, é bom ter uma cara que não os aterrorize antes da primeira pergunta. Mas se não posso ter Gaulama, então quero Susmis, a bonitinha. Pelo mesmo motivo que quero Maulel, e porque sabe andar sem fazer barulho.

A mestra ficou em silêncio durante algum tempo. Afinal, disse:

- Está bem, Gataris. Floris, Maulel, e Susmis. Agora vá. Não falhe.

Gataris saiu, com Delezel atrás. Adena não perdeu a oportunidade.

- Agora você também está de mau-humor, Gataris – e riu com vontade.

7- CAIXAS DE GUSANDA

Glaris reteve Serena ao final da reunião.

- Coronel, devo ir agora ao palácio. Preciso explicar a Nossa Majestade, Fernan III, o que estamos fazendo para garantir a vitória das nossas armas sobre os ossianos. É uma tarefa árdua, se a senhora me entende. Mas até o palácio é uma caminhada considerável, a minha audiência só está marcada para a Hora dos Ouvidos, e eu gostaria de trocar algumas ideias a respeito das operações a realizar contra as ilhas. Se a senhora não tiver nenhum compromisso imediato…
- Obrigada, general… será um prazer acompanhá-la. Mas devo confessar que ainda não tenho muito claras as minhas ideias a respeito.
- Nem eu, coronel. Mas essa é a intenção do nosso passeio.

Serena sorriu. As duas mulheres saíram juntas, caminhando pelos corredores amplos e bem iluminados do edifício do Alto Comando.

- É admirável esse sistema de espelhos, não? - comentou Glaris.
- Sem dúvida. Aliás deveríamos dar aplicação militar a esses engenhos. Cegar o inimigo em batalha não é uma má ideia.

Glaris sorriu. Essa era uma característica marcante da Coronel Serena. Qualquer assunto era imediatamente desviado por ela para uma discussão a respeito da arte da guerra.

- Infelizmente não vamos poder fazê-lo antes das batalhas que teremos de travar. Diga-me, acha possível tomar Evelenia antes da chegada da frota ossiana?
- Para falar com franqueza, acho muito difícil. A praça é bem guarnecida. Ainda mais que não teremos a colaboração da Mina Real.
- Vou tentar convencer Nossa Majestade a reverter essa decisão do Alto Comando. Acho quase tão difícil quanto tomar Evelenia, mas não custa tentar. A não ser que a senhora ache que não vale a pena.

As duas mulheres saíram pelo portão do Alto Comando, batendo continência para as sentinelas de plantão.

- Senhora Glaris, com a sua licença, eu penso que temos pouco tempo para planejar o que fazer. Se ficarmos no aguardo de uma mudança de ideias por parte do Rei, ou do Alto Comando, acabaremos tendo ainda menos tempo.
- A minha licença é sempre sua, coronel. E devo dizer que tendo a concordar. Mas olhe para isso…

Apontou para um vendedor ambulante, que havia armado a sua tenda na esquina.

- Inacreditável, em plena Palis Imperial, a cem jardas do Alto Comando… quem dá licença para essas coisas?
- Não eu, com certeza. Mas vamos ver o que ele tem a oferecer, já que aparentemente alguém mais sábio que nós o permitiu.

Aproximaram-se do mercador, que não pareceu nem um pouco intimidado pela presença e pelos uniformes das militares.

- Boa fase, senhor mercador… o que têm a nos mostrar?
- Ah, senhora general… somente as melhores e mais finas obras primas. Toalhas de mesa de Genin, pintadas a mão, porcelana finíssima de Teruan…
- Estou vendo… e isto?
- Ah, senhora dos meus senhores… caixas de Gusanda, da mais fina madeira marchetada; são verdadeiras obras primas. Esta aqui, por exemplo, conta toda a história do cerco de Astibela. São dez caixas primorosamente encaixadas…

E abriu a caixa, cuja tampa era ricamente ilustrada com a cena da preparação do primeiro assalto à poderosa fortaleza, mostrando a segunda caixa, a qual, naturalmente, ilustrava a derrota dos atacantes.

- A última caixa é um verdadeiro prodígio – continuou o mercador – mostra a rendição do comandante de Astibela, ou Astbrno, como eles diziam na sua estranha língua.. com detalhes inacreditáveis, e tem apenas um terço do tamanho desta… um minuto, vou mostrá-la…

E atarefou-se em abrir as diversas caixas, para comprovar o que dizia.

- Caixas de Gusanda… caixas dentro de caixas… - murmurou Serena – Senhora, creio que sei do que precisamos. Mercador, quanto custa essa caixa?
- Duzentos temani, senhora General. E vale cada pena desse preço.
- É realmente maravilhosa, mercador, mas eu sou coronel, não general.
- Por enquanto, minha senhora… mas se me permite uma humilde opinião, não por muito tempo.

Serena riu alto da adulação.

- Vou levá-la, então… mas por cento e cinquenta temani, mercador.
- Quem sou eu para discutir, minha senhora… é sua por cento e setenta temani, como a senhora acaba de dizer.

As duas militares riram.

- Está bem, malandro. Cento e setenta, se você me explicar como faz para ser autorizado a comerciar dentro de Palis Imperial.
- Ah, senhora… esse é um assunto complexo, mas devo dizer que essas questões passam pela Balança Real… é do interesse de quem faz as contas da nossa orgulhosa força armada que algum comércio ocorra aqui… - ele olhou para as militares, com uma expressão risonha – e talvez alguma conversa fiada de mercadores, também.

- Entendo – disse Glaris. Vá dizer a quem lhe autorizou que ganharemos a guerra, que Nossa Majestade Fernan III será vitorioso e ficará conhecido como Fernan, o Grande…

O mercador riu, estendendo a mão para pegar o dinheiro de Serena.

- Com certeza, Senhora General… com um comando como o seu, não é possível que qualquer outra coisa venha a suceder.

Serena pegou a sua nova caixa – ou, melhor dizendo, as suas dez novas caixas – e as militares voltaram a caminhar.

Zuzanis, é? - perguntou Serena – Controlando o que pensam os poderosos de Palis?
- Provavelmente – respondeu Glaris – o que pensam, e também o quanto gastam… mas diga-me, qual foi a sua ideia?
Hoje mais cedo, Adenai falou numa armadilha… e acho que todos nós pensamos nisso. E agora por coincidência, acabo de comprar uma maravilhosa caixa de Gusanda, uma coleção de caixas, umas dentro das outras…
- E pensou numa armadilha dentro de outra armadilha, é? Brilhante! Já tem alguma ideia de como seriam essas armadilhas encadeadas?
- Ainda não… mas até amanhã acredito que possa imaginar alguma coisa
.

Glaris riu.

Então pense agora, senão vou chegar na sua frente. Lembra-se da ilha que você desprezou durante a nossa reunião? Tetis Gara?
- Claro… a ilha da neblina.
- Na verdade, Tetis Garnaas ilhas da neblina… com um estreito navegável entre elas.
- Onde a nossa frota poderia ancorar?
- Poderia, mas seria melhor se não o fizesse. Principalmente se o inimigo pensasse que de fato o fez. Com a neblina… - riu.
- Com a neblina, o inimigo poderia ser levado a crer que a frota está lá… e imaginar uma armadilha óbvia, um convite para entrar lá e destruir a frota – e ser atacado por tropas de terra escondidas nas ilhas.
- Exatamente… e então, para evitar a armadilha óbvia, dividiria a sua frota, para prender a nossa no estreito pelos dois lados. E poderíamos então derrotar a frota ossiana por partes. Acho, Senhora Coronel, que as suas caixas de Gusanda vão ganhar a guerra para nós.

8 - A BATALHA DE TETIS GARNA

A frota ossiana chegou a Tetis Garna ao amanhecer. A comandante ossiana, Losinganis Amastis, ficou um pouco perplexa com o que viu.

- O que eles estão pensando? Que vamos entrar aí?
- Aparentemente – respondeu a sua chefe de Estado-Maior, Andana Sumissanis. - Parece uma coisa bastante tola, mas eles evidentemente estão aí. Talvez pensem que não os vemos, por causa do nevoeiro?

De fato, os mastros da frota palisina eram debilmente visíveis, à luz precária da Hora das Pernas, mas estavam obviamente ali.

- Se pensam isso, vamos logo mostrar que estão enganados… - virou-se para o tenente que retransmitia as ordens – Trabucos! Carregar! Alternar blocos e saraiva com clareban! Agora! - voltou-se de novo para Andana: - vamos fechar o estreito… sinalize para Toiel levar a vanguarda para bombordo, e Marinis seguir com a retaguarda a estibordo, e fazerem junção na outra boca do estreito.
- Vamos dividir a frota?
- Sim, vamos… sei que parece contra as regras, mas a frota deles está aqui à nossa frente… com a quantidade de mastros que estão ali, não podem ter muitos navios em nenhum outro lugar. E se arremeterem contra nós… bem, metade da nossa frota é suficiente para acabar com eles.
- É verdade…

A tenente da sinalização voltou.

- Pronto, Senhora Almirante… as ordens foram enviadas.
- Muito bem, tenente – respondeu Andana. Agora suba as bandeiras para que a vanguarda siga a bombordo e a retaguarda a estibordo… fazer junção na outra boca do estreito. Vamos cercar o inimigo.
- Muito bem, senhora! E quando aos trabucos?
- Aguarde… à Hora das Mãos, se não houver novas ordens, mande disparar. Sempre alternando blocos e saraiva incendiária, e sempre disparar, recuar, avançar de novo para o novo disparo.

As duas almirantes estavam satisfeitas. O inimigo havia tentado uma manobra óbvia, mas acabaria cercado dentro do estreito de Tetis Garna, onde, considerando a natureza estéril do solo das ilhas, logo passaria fome.

- Vão comer ovos de cormorã por uma semana, depois vão levantar bandeira branca…
- Assim espero, Senhora Andana.

Da praia enevoada de Tetis Garna, os palisinos viram a frota ossiana se dividir, uma parte seguindo para a esquerda, a outra para a direita, enquanto uma parte maior permanecia, bloqueando a saída do estreito.

- Pronto – disse a capitã Ada Revel, que comandava as tropas de infantaria na margem esquerda do estreito – até aqui funcionou. - Dois voluntários! - gritou – Dois voluntários para levar uma mensagem até a enseada Vermelha!

Um rapaz e uma moça se apresentaram. Ada explicou-lhes a missão.

- Sejam rápidos. Precisam se manter à frente dos navios deles.
- Sim, senhora. Compreendido.
- Vão então.

Olhou os dois mensageiros se afastarem correndo, e voltou a dar ordens.

- Trabucos! Carregar! Somente blocos! Agora! Largar… ao meu sinal!

Os artilheiros correram para cumprir as ordens. Enormes blocos de pedras foram colocados nas pás dos trabucos, enquanto outros soldados preparavam os bois para largar os gatilhos.

Ada aguardou os trabucos ficarem prontos, então berrou, a plenos pulmões:

- Largar… agora!!!!

As enormes pedras voaram em direção aos navios ossianos. Não que tivessem grande chance de acertar, mas era preciso manter o inimigo à distância; era absolutamente essencial que não se aproximassem demais da boca do estreito.

Da outra margem do estreito, os trabucos sob o comando do capitão Florel Dedissis também dispararam. A batalha de Tetis Garna tinha começado.

9 - A ENSEADA VERMELHA

A Hora dos Braços já ia pela metade quando os dois mensageiros enviados por Ada Revel chegaram à enseada Vermelha. Pelo caminho tinham encontrado alguns destacamentos palisinos. O nervosismo era geral; todos receavam que os ossianos desembarcassem. Mas a missão correu sem problemas; Tinis e Sinel, os dois mensageiros, chegaram sem problemas às praias da enseada Vermelha, apesar dos boatos e do nevoeiro, e, dentro da neblina intensa, viram o que os ossianos não podiam imaginar: a frota palisina, inteira, a postos para o combate.

Os dois estafetas foram embarcados imediatamente em um bote do Desastre – o navio capitânia da frota palisina, e levados à presença da própria Gláris de Guena, a quem informaram o que lhes fora ordenado – que a frota ossiana havia chegado, que havia se dividido em três, uma dessas partes avançando pela costa a estibordo do estreito, vindo, portanto, diretamente em direção à enseada Vermelha, onde encontraria a frota palisina.

- Ótimo! - exclamou a comandante suprema da força palisina. - É tudo que queríamos. Não deve demorar, eles estarão aqui. Tudo pronto, Adenai?
- Tudo, Senhora. Às suas ordens, podemos começar. Os trabucos estão carregados e engatilhados, as catapultas também, os arqueiros de prontidão, os remeiros prontos. Só precisamos do inimigo, agora.

Glaris riu.

- Muito bem. Acho que logo o teremos também.

E, de fato, mal Tinis e Sinel tinham sido encaminhados à cantina para se refazerem da corrida, dois outros soldados foram trazidos a bordo. Estes vinham de muito mais perto, da costa oposta ao promontório que delimitava a enseada Vermelha. A frota ossiana acabara de passar por lá; em dez minutos dobraria o promontório.

As ordens começaram em ritmo frenético.

- Em frente! A toda força! Carga a esporão! Agora! Arqueiros, carregar! Agora! Artilheiros, a postos! Agora! Depressa! - Glaris ia gritando, enquanto colocava elmo e véu.

Os tambores começaram a marcar o ritmo dos remos, e a pesada e obsoleta frota palisina começou a se mover. Não chegaria a atingir mais do que cinco ou seis lembina por hora – longe das oito de que a frota ossiana podia se gabar. Mas teria de ser o suficiente.

E então os ossianos começaram a aparecer. Vinham em velocidade de cruzeiro, não mais que dois ou três lembina por hora; não estavam atacando, estavam rumando sem pressa para a outra boca do estreito, e tentando observar se havia movimentos em terra. E assim foram tomados de surpresa.

- Maldição!… Tem outra frota aqui! A bombordo! Frota palisina a bombordo! - o marinheiros nas gáveas se esgoelavam gritando.

Nos conveses, marinheiros e oficiais olharam e viram. A frota palisina, toda ela – pequena, se comparada à frota ossiana toda, mas muito maior do que a retaguarda comandada pela Contra-Almirante Marinis. E lenta, se comparada à frota ossiana no seu esplendor, mas rápida demais para que o abalroamento pudesse ser completamente evitado.

- Estibordo! Um quarto a estibordo! Agora! Remos de bombordo, a toda força! Remos de estibordo, em freio! Agora! Arqueiros à amurada! Agora! Trabucos! Carregar! Somente saraiva! Agora! Largar! À vontade!

Em desespero, a frota ossiana começou a virar à direita, para escapar ao impacto dos esporões palisinos. Mas era tarde demais. O Pavor, que vinha à frente, acertou o Marola em cheio, no meio do convés. O som de madeira quebrada encheu o ar, junto com os gritos de dor dos feridos, as ordens apressadas dos oficiais, o zunir das primeiras cargas dos trabucos e catapultas. Era só o começo. O Marola afundou rápido, o Vento Norte, atingido mais para trás pelo Desgraça, adernou, o Tragédia atingiu o Linda Menina quase ao meio, o Tristeza abalroou o Pássaro Feliz

Os arqueiros palisinos disparavam sem parar, buscando os pilotos e os oficiais inimigos. Havia séculos, a Marinha Real ossiana não passava por nada parecido. Quando enfim os barcos ossianos conseguiram girar para estibordo e acelerar o suficiente para se afastar dos atacantes, os palisinos haviam conseguido afundar ou tirar de combate nada menos de dezenove deles. Em comparação, apenas o Má Sorte e o Infortúnio haviam encalhado, e o Terror navegava sem rumo, sem mastro e com o leme quebrado. O Maldição seguia em frente, embora sem o esporão, que se havia soltado e afundado junto com sua vítima, o Céu de Verão.

Mas o pior ainda não havia passado. Embora os barcos ossianos agora fugissem mais rápido do que os palisinos podiam persegui-los, e estivessem assim a salvo dos esporões, ainda estavam ao alcance dos trabucos e das catapultas. Nem todos os navios palisinos tinham trabucos, o que era uma das queixas mais amargas dos seus comandantes – mas eram mais de cem navios contra pouco mais de trinta. Quando os marinheiros de Ossin conseguiram escapar ao alcance da artilharia de bordo de Palis, apenas oito navios dobraram de novo a estibordo e fugiram, a toda pressa, de volta para a frota principal na boca do estreito. Trinta e cinco estavam no fundo do mar, dois haviam sido apresados pelos palisinos, um havia perdido os remos, três os mastros, e todos os restantes os lemes. Centenas de marinheiros e soldados ossianos flutuavam agarrados a tábuas.

Ainda era a Hora das Mãos, e a Marinha Ossiana havia sofrido a sua primeira derrota para a Vela Rela palisina.

Glaris mandou dois navios recolherem os náufragos de ambos os lados e levarem-nos para a praia, e a frota palisina, agora reduzida a cento e dezenove navios dos cento e trinta e dois iniciais, virou para o outro lado, em busca da vanguarda ossiana comandada pelo vice-Almirante Toiel.

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Era quase Hora da Boca quando os barcos ossianos que haviam sobrevivido ao desastre da enseada Vermelha chegaram de volta à frota principal, na boca do estreito. O major Tinel, que era o oficial de maior patente a bordo dos navios que haviam conseguido escapar, teve uma tarefa ingrata a cumprir. O desastre não tinha sido apenas uma derrota gravíssima para uma Marinha que se imaginava invencível; tinha sido conseqüência direta das decisões da comandante superior da frota e da missão. Não havia como contar a estória sem que ela parecesse, direta ou indiretamente, uma acusação direta de incompetência ao comando superior; portanto, não havia como contá-la sem provocar a ira da Almirante.

- Como, a frota inteira de Palis? Ela está aqui, não está vendo? - perguntou a Almirante Losinganis.
- Almirante… não posso explicar como a frota deles estava lá. Dobramos um promontório, e deparamos com uma frota inteira, mais de cem navios certamente, investindo a esporão contra nós. A Almirante Marinis tentou manobrar para escapar, mas era tarde demais…
- E onde está Marinis?!
- Senhora… não sabemos onde está a Almirante Marinis, apenas que não voltou conosco. Considerando o que nos aconteceu, ou morreu em combate, ou foi capturada pelos palisinos, ou, queira a Deusa, conseguiu nadar para a praia e escapar ao inimigo. A nau dela, a Alegria dos Mares, certamente afundou; eu mesmo vi quando um bloco de pedra quebrou sua proa, um pouco atrás do meu navio.
- Mas como é possível? Então eles têm uma frota duas vezes maior do que imaginávamos?
- Senhora… - interpôs a Almirante Andana – com a sua licença…

Losinganis olhou para Andana com a expressão furiosa, mas acenou a cabeça para que a outra falasse.

- Até onde sabemos, a frota deles não tem mais do que cento e quarenta navios, no máximo cento e cinquenta, provavelmente menos. Se havia mais de cem navios emboscando a flotilha da Almirante Marinis, ou todas as nossas informações estavam erradas, ou… ou o que estamos vendo ali no estreito não é a frota de Palis.
- Não é a frota de Palis… então o que é?
- Não sei, senhora. Mas a visibilidade aqui é ruim; o que nós vemos são os mastros dos navios, não navios inteiros.

Losinganis prendeu a respiração. De repente, começou a compreender. Os palisinos vinham disparando seus trabucos contra a frota ossiana desde manhã cedo, e ela e seus oficiais haviam naturalmente acreditado que se tratavam dos trabucos dos navios de Palis. Mas… claro, poderiam ser trabucos desembarcados.

Marinis tinha partido com cinquenta e um navios. Não era uma força desprezível. Não poderia ter sido derrotada por uma flotilha pequena. Na verdade, considerando a diferença de qualidade entre os navios de Ossin e os de seus inimigos… mesmo que eles tivessem tido a vantagem da surpresa… para destruir a força de Marinis da forma completa como o Major Tinel descrevera, necessariamente deveria ter sido uma força consideravelmente maior que a dela. O dobro, no mínimo. Ou seja, a frota inteira de Palis!

- Desgraça… não posso acreditar…

Losinganis olhou para sua chefe de Estado Maior, sem nada melhor para dizer. Era evidente; tinha caído numa emboscada. Havia dividido a frota, e, com isso, entregado Marinis e seus comandados à derrota, possivelmente à morte. Se era assim, a volta a Didinis seria complicada; ela seria a primeira almirante ossiana em muitos séculos a voltar derrotada para Ossin. Mas havia uma preocupação mais urgente. Havia a flotilha de Toiel, cinquenta e três navios ossianos separados da frota principal, e navegando agora… talvez ao encontro da frota palisina inteira. Tinha de tomar uma decisão imediata, mesmo sem saber ao certo o que eram os mastros que via no estreito de Tetis Garna.

- Muito bem. A bombordo, a toda força. Vamos procurar a flotilha de Toiel. Se a frota de Glaris de Guena está à solta… não podemos deixar Toiel confrontá-la sozinho. Levem o major Tinel para a cantina.
- Senhora…
- Eu sei que é provavelmente tarde demais, Andana. Mas não há escolha. E, sim, tem de ser a bombordo. Não podemos permitir que escapem para Singlara. Por bombordo, talvez possamos cortar o caminho deles; se formos por estibordo quase certamente chegaremos tarde para ajudar Toiel, e deixaremos a rota de Singlara livre para eles. Então… a bombordo, a toda força. Agora!
- Sim, senhora – concordou Andana. - A bombordo! A toda força! Agora!

E a frota principal de Ossin virou à esquerda, em busca do seu destino.

11 - A ENSEADA VERDE

Glaris mandou a frota avançar a toda a força. O mais difícil ainda estava por fazer; era preciso encontrar e derrotar a segunda parte da frota ossiana o mais rápido possível. E mesmo depois disso, a frota restante de Ossin ainda seria praticamente do mesmo tamanho da sua frota, cento e poucos navios, cada um deles mais rápido, mais ágil, e mais bem armado do que os de Palis.

E as condições em que haviam derrotado a flotilha de Marinis não se repetiriam; não havia como montar uma emboscada, não haveria o ataque a esporão para devastar os navios inimigos e quebrar o moral da marujada. Haveria alguma surpresa, pois Toiel e seus comandados acreditavam que a frota de Palis estava no estreito. Mas não haveria a emboscada, os navios de Palis surgindo do nada, como na enseada Vermelha. Agora as duas frotas se aproximariam de frente, se veriam de relativamente longe, e se Toiel quisesse, poderia fazer meia volta e buscar a segurança da frota principal. Ou, se decidisse lutar, poderia contar com a maior velocidade e flexibilidade dos seus navios, para compensar a inferioridade numérica. Portanto…

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