Carta De Uma Cadete Da Cavalaria

Querida prima,

Escrevo agora com um pouco mais de tranqüilidade, pois peguei quatro dias de cadeia por causa de um incidente num baile de cadetes da Marinha (já estava preocupada, pois isto ainda não tinha acontecido este ano, e os cadetes que passam muito tempo sem cadeia começam a ser perseguidos pelos colegas, que os chamam queridinhos dos oficiais). Foi uma coisa boba: eu e mais oito colegas fomos ao baile dos bundas-frouxas para fazer baderna e manter a "saudável rivalidade entre as armas". Conseguimos entrar sem sermos reconhecidas, e quando começamos a quebrar tudo - foi divertidíssimo, os bundas-frouxas corriam de um lado para o outro, gritando "as pernas abertas! as pernas-abertas chegaram!" - descobrimos, da pior maneira, que uma capitã e uma tenente do nosso batalhão estavam entre os convidados. Nos deram voz de prisão no ato, nos passaram um sermão sobre as sagradas tradições da Sela Real e os deveres dos oficiais de Cavalaria, e nos conduziram para a cadeia do batalhão, escoltadas por uma dúzia de galantes cadetes da Frota Real, muito zangados e compenetrados, que passaram o tempo todo nos chamando de pernas abertas e limpadoras de esterco, sem que pudéssemos responder à altura.

Mas isto são estudantadas, que ninguém leva muito a sério, pelo menos nas armas que realmente contam. Já descobri que os cadetes dos arqueiros, da engenharia e da artilharia, que são na maioria plebeus, - para não falar no rebotalho da infantaria - não encaram estas coisas com o mesmo espírito que a nobreza montada ou embarcada. Isto, aliás, vem a propósito de outro assunto, que é o clima político que anda extremamente tenso aqui na Corte. Conspira-se, aberta ou veladamente, contra ou a favor, nos quartéis, nas tabernas, nas ruas. Decididamente, Sua Majestade Imperial Fernan III vem perdendo o controle da situação. Herdeiro da tradição centralizadora da Casa Real, não inspira nenhuma confiança na nobreza; indeciso e fraco, está sendo abandonado pelos mercadores, que preferiam ver logo instalada no trono a sua filha Ada, mais enérgica e voluntariosa; impaciente com os sagrados rituais do cargo, não conta com a simpatia do clero de Sara. Enquanto isso, as más colheitas tornam a plebe suscetível a todo tipo de apelo.

Como já devo ter te dito, por trás de todos os juramentos, a Guarda Imperial fervilha política. Os cadetes não ficamos imunes a isso, pois nossos instrutores são oficiais, em sua maioria comprometidos com alguma das alas atuantes na Guarda. Na Escola da Sela Real, a maioria dos instrutores pertence à ala chamada "tradicionais", identificados com as preocupações e as causas da nobreza, e eu imagino que o mesmo ocorra na Frota. Mas o Arco, a Mina, a Funda e a Espada Reais fervilham de seitas e contra-seitas, embora, pelo que eu possa entender, predominem os oficiais "políticos", partidários da política centralizadora da Casa Imperial, divididos entre os que se conformam com Fernan III, os que querem tutelá-lo e os que querem Ada VI no trono; sendo muito numerosos também os "profissionais", sobretudo na engenharia, que pensam que a Guarda deveria manter-se afastada da política, e passam o tempo fazendo política em nome desse ideal.

Fiquei sabendo um pouco mais a esse respeito graças a uma estudantada anterior, e frustrada, contra uma festa da Mina Real. Na véspera do evento, Serena recebeu uma carta com notícias ruins da família, Fainis pegou cadeia por ter encilhado o cavalo ao contrário - com o freio no rabo e tudo - , Dagonis baixou enfermaria, com bilis clara, Sinis comprometeu-se a cuidar dela, e Andana e Saanin resolveram que o plano estava prejudicado e preferiram ficar no alojamento, estudando álgebra. Como eu já tinha boas notas em álgebra, resolvi ir sozinha mesmo, pensando que, afinal, embora não seja tão divertido quanto acabar com a festa, participar dela também tem o seu charme. Andana passou a tarde fazendo troça da minha decisão de ir à festa dos tatus, mas eu disse a ela que era uma prerrogativa dos bons alunos de álgebra, matéria na qual ela é tão proficiente quanto um cadete de infantaria, e ela se recolheu emburrada, de modo que aproveitei a minha noite livre dançando com os tatus. Claro que acabei dançando mais com um deles, um tipinho bonitinho, plebeu de quatro costados, que bebeu muito, e em conseqüência falou ainda mais: mal dos tradicionais e dos políticos, bem dos profissionais, e bem, e também mal, de Glaris de Güena.

Bem, Glaris é uma figura enigmática e estranha. Nobre - é Baronesa de nascimento e Condessa pelo casamento - fez carreira na Espada Real, o que já é extraordinário, mas mais ainda porque não foi por insuficiência de notas, como é o caso de quase todos os oficiais de infantaria. Ao contrário, é uma oficial brilhante, e uma grande estrategista. Sempre tive como certo que ela se alinhava com os profissionais, mas o meu amiguinho engenheiro me desfez a ilusão. Ele achava que ela estava com os tradicionais, o que eu sei que é falso, mas como ele evidentemente era profissional até a raiz dos cabelos, e não contava Glaris entre seus comparsas, enchi-me de mais dúvidas. Claro que eu já sabia que Glaris é a "coruja de touca" do Alto Comando, coisa que aliás ficou bem clara na guerra contra Ossin, quando lhe deram o comando da Frota Real, que naturalmente todos esperavam que fosse humilhada, como sempre, pela marinha ossiana. Dizem que Taquian comeu um guardanapo quando Glaris derrotou os ossianos na baía de Anasaguel, para baixar enfermaria e não ter que participar da condecoração da heroína nacional. Não sei se acredito nisso, mas gostaria que fosse verdade, pois o Senhor General Taquian é uma das figuras mais asquerosas que conheço, e eu, no lugar de Fernan III, não confiaria nele da maneira abjeta que Sua Majestade faz. Ele é partidário dos comerciantes, creio, mas encara o Imperador como um instrumento dessa política, e não dos mais eficientes.

Eu pensava, contudo, que esses episódios se devessem só à ciumeira que grassa entre os nossos generais, porque Glaris, evidentemente, entende mais da arte da guerra do que todos os outros juntos; mas começo a crer que não é assim. Não sei o que Glaris possa representar; certamente não é a nobreza e tudo indica que não são os mercadores. Entretanto, a plebe a idolatra, tanto quanto odeia Taquian e Sinis; ela é a vencedora de Anasaguel, e isso basta à imaginação do populacho. Por outro lado, é claro que ela fascina boa parte dos cadetes e jovens oficiais, sobretudo da Marinha, que deve a ela a recuperação do seu prestígio, e da Infantaria, mas não só. Enquanto Taquian, Sinis e Delis conspiram ostensivamente, cada um para o seu lado, Glaris se mantém afastada das confusões palacianas, o que só pode significar, de duas, uma coisa: ou bem ela não conspira, ou bem conspira com muito mais discrição e competência.

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